Manifesto contra o encerramento das livrarias

MANIFESTO
CONTRA O
DESASTROSO
ENCERRAMENTO
DAS LIVRARIAS
DA CIDADE
DE LISBOA
NO CENTENÁRIO
DA LIVRARIA
SÁ DA COSTA

Mercê de nebulosas negociatas
que serão caso de polícia
mais de o serem de tribunais
a Livraria Sá da Costa
só não fechou
ainda
a porta
porque nós, os seus 5 livreiros,
a temos mantido aberta
— e já lá vão 2 anos —
desde que um dos sócios dela proprietário
se pôs a monte
deixando atrás de si todo um cenário
de desolação
que passa por nós
— os porventura mais afectados —
mas se estende também
à Livraria Buchholz
e bem assim às editoras
Portugália e Cavalo de Ferro,
casas que levaram tempo
a honrar um nome
e que ele praticamente desmantelou
em menos de um fósforo.
Que não está sozinho
ao proceder assim
sabemo-lo bem,
como vamos sabendo da impunidade
que rodeia os chamados crimes
de colarinho branco,
esses que engordam causídicos
antes que os tribunais
decidam de vez
quem é que deve o quê
e a quem
e quanto
— caso este da Sá da Costa.Ora nós devemos sublinhar
— e que isto valha um grito! —
que o nosso papel,
nesta casa e neste momento,
não é apenas o do esforço de manter
os tão badalados «postos de trabalho»,
ainda que estes ao nível
do pãozinho de cada dia
(e pouco mais,
como se pode deduzir).
O nosso papel é o de,
afinal,sermos — para todo os efeitos práticos,
no dia-a-dia do nosso trabalho —
os herdeiros de uma casa,
de uma actividade,
que desde há exactamente 100 anos
(a Sá da Costa foi fundada a 10 de Junho de 1913)
tem garantido um indesmentível
prestígio cultural
quer como Editora,
agora suspensa,
quer como Livraria,
esta que animamos
com a nossa paixão
e o nosso labor obstinado.
Herdeiros, note-se,
sem que reivindiquemos quaisquer direitos
de propriedade material.
Herdeiros, pois, tão-somente
do seu legado,
do seu espírito,
que é também,
e de que maneira,
o espírito deste lugar que habita
há (também exactamente) 70 anos,
lugar cobiçado demais
pelos negócios do dinheiro graúdo
para que haja alguém
— pessoa ou entidade —
que o defenda,
que o mantenha
como lugar de difusão
por excelência
de valores imateriais,
esses valores que a todo o custo
se devem preservar,
se devem promover
no absoluto vazio gerado
pela ditadura financeira
— rapace e usurária.
Sinal dos tempos
— bem paradigmáticos desta
apagada e vil tristeza em que o País,
e nós com ele,
nos encontramos mergulhados —
a zona do Chiado,
com sua histórica envolvência,
tem sido palco de uma razia,
de uma devastação,
que nem a animação de rua,
também ela apregoada,
e até promovida,
de «cultural»,
ilude a substantiva destruição
dos seus espaços culturais
emblemáticos:
por fatal «mudança de ramo»,
vítimas da especulação dos arrendamentos,
expulsas pela investida
tornada «natural»
das lojas de luxo,
encerraram portas
num abrir-e-fechar de olhos
a Livraria Portugal, a Livraria Guimarães, a
Livraria Barateira,
a Livraria Camões,
e estão em vésperas de fechar
a Livraria Olisipo e a Livraria Artes e Letras
se não mesmo
a provecta Livraria Lello.
*
Senhoras e senhores:
não estamos a acusar a FNAC,
não estamos a acusar a Bertrand,
mesmo se entendidas elas
(e por alguns)
como eucaliptos sugando a seiva
do mercado de consumidores.
Livrarias generalistas,
com sua escala de certo modo gigantesca,
ocupam o lugar que ocupam,
fazem pela vida,
propõem mercadorias a públicos
necessariamente diversificados.
Acusação por acusação,
o nosso papel assenta em acusarmos
— e para além do banditismo
de quem arrastou a Sá da Costa
à situação de falência inequivocamente
fraudulenta —
todo um estado de coisas
que faz imperar o consumismo
mais ignaro e desenfreado
e mais enganadoramente «rentável»
( já que não passa de fogo-fátuo
sem tempo, pois, de consolidação)
como símbolo
eleito a soberano
da Barbárie
que mina, escareia, esvazia
a Cidade— o espírito de uma Cidade —
como lugar de civilismo
civilizado.
É esta a nossa acusação
primordial.
Ora, a cidade da paranóia mercantil
— e do fartote de circo a adornar
o parco pão —
passa de lado,
não sabe, não conhece,
não quer saber,
não quer conhecer.
Sendo a «concorrência»
a verdadeira, incontornável «alma do negócio»
(dizem-no gentes desalmadas)
a própria corporação
de editores e livreiros
não só encolhe os ombros
como parece rejubilar
quando um «concorrente»
— ainda que não faça concorrência
por ser outro o seu âmbito —
se vê forçado a fechar a porta.
Resultado: ninguém levanta
um fósforo do chão.

Decididamente
— outro sinal, triste sinal, dos tempos —
a solidariedade esvai-se
das práticas sociais,
ficando a palavrinha reduzida ao seu
uso demagógico.
Não é por acaso
— e é bem significativo —
que nas actuais circunstâncias da Sá da Costa,
apenas (e se tanto) uma dúzia de editoras
que de uma ou de outra maneira
se situam nas margens
do negócio-pelo-negócio
se dispuseram a colocar os seus livros
na nossa livraria.
Será de justiça nomeá-las:
& etc, Antígona, Artistas Unidos, Dois Dias,
Casa da Achada, Chili Com Carne, Boca, Blau,
Colares, Colibri, Fenda, Letra Livre, Livros
Horizonte, Mariposa Azual, Orfeu Negro,
Pianola, Pierre von Kleist, Vega
todas elas aventuras editoriais
que se teimam luzes, pequenas luzes,
no denso negrume da produção livresca
massificada.
De há 2 anos para cá
só a elas devemos a continuidade no que respeita
às chamadas «novidades».
O resto,
com que enfrentamos os encargos básicos,
é o que, cerrando fileiras, pudemos salvar
do acervo que colocou a Sá da Costa
como ponto de referência da
cultura portuguesa,
com suas prestigiosas colecções onde avulta
— e é um monumento, caros Senhores! —
a Clássicos Sá da Costa — os antigos como
os da Nova Séria.
Mas outros amigos — compradores ou não —
mas bem distintos daquela «comunidade do
[croquette»
que não falha inaugurações,
têm vindo a apoiar-nos
ao comparecer nas iniciativas
com que sublinhamos
a permanência
e a afirmação cultural da Sá da Costa.
Com eles e connosco,
o Chiado tem dado um ar de sua graça
como lugar de culto.
Saberão alguns de vós do vídeo
que a Renata Sancho realizou
sobre a morte anunciada da nossa Livraria.
«Dias Contados», lhe chamou.
Pois bem:
mais de setecentos dias
já vão contados
desde que os responsáveis financeiros
e administrativos viraram costas.
E ainda cá estamos,
intervenientes e testemunhas.
É certo que não sabemos
onde estaremos amanhã.
Mas hoje,
neste dia em que celebramos
o centenário
de uma casa de cultura
que tem nobilitado o seu mister
e contribuído para que a Cidade
seja mais do que um conjunto
de prédios, ruas e
cadáveres adiados,
sentimo-nos honrados
por termos conseguido puxar
a infausta situação
até ao momento da própria
efeméride.

Sem estes 2 anos de perseverança
não estaríamos hoje aqui,
mantendo a memória
da Sá da Costa
como realidade viva
ao invés daqueles que a querem
estátua inerte
para um qualquer museu de cera.
*
De braço dado com o nosso amigo pintor
Rouslam Boupiev,
e o nosso etnógrafo João Coimbra,

Somos,
Os Livreiros da Sá da Costa,
Suzana Pires, Salomé Gonçalves, Noémia
Batalha, Pedro Oliveira e António Esteves.

(Textos escrito com a colaboração do editor da &etc Vitor Silva Tavares)

Até sempre.
Rua Garrett, 100
2013

Arquivo Municipal de Lisboa